Enquanto o mundo discute o clima, Salvador mira o futuro a partir de um território historicamente negligenciado. A Ilha de Maré foi escolhida como projeto-piloto internacional para criar uma cidade mais preparada para eventos extremos — um teste que pode virar modelo mundial.
Um laboratório vivo no meio da Baía
Salvador decidiu escrever seu manual de sobrevivência climática começando por uma página esquecida. A Ilha de Maré, comunidade quilombola na Baía de Todos-os-Santos, foi selecionada para sediar um projeto-piloto de resiliência urbana. A iniciativa é parte de uma rede global que inclui a Resilient Cities Network e a consultoria internacional Arup. A ideia é simples na teoria e complexa na prática: usar dados técnicos e — principalmente — o conhecimento ancestral das lideranças locais para criar estratégias que tornem o território mais forte diante de chuvas, inundações e outros eventos extremos.
Amanhã, técnicos da prefeitura e da Arup desembarcam na ilha para o primeiro diagnóstico de campo. “Isso depois acaba extrapolando para o restante de Salvador e vai servir de referência para outras cidades na América Latina e no mundo”, adiantou o secretário de Sustentabilidade e Resiliência, Ivan Euler. Um projeto que nasce local, mas com ambição global.
Do dado à ação: o workshop que revisa o futuro
O pontapé foi dado nesta terça-feira (2), no auditório do Arquivo Público, no Comércio. O Workshop: Futuro de Salvador e Resiliência Urbana reuniu gestores, acadêmicos e moradores para um exercício raro: revisar a estratégia de resiliência da cidade, lançada em 2019, e o plano de ação climática, de 2020, à luz das mudanças que já estão acontecendo. O programa é financiado pela Lloyd’s Register Foundation.
Javier Garduño, da Resilient Cities Network, defendeu uma lógica circular para o planejamento. “Temos que voltar atrás. Quais são as experiências e os momentos que marcaram uma cidade como Salvador? Para, a partir daí, pensar no futuro”. O que sair de Salvador, segundo ele, será exemplo para outras 18 cidades latino-americanas.
A urgência não é projeção, é realidade
Enquanto se planeja o horizonte de 2040, o presente bate à porta — e com força. Sosthenes Macêdo, diretor da Defesa Civil (Codesal), trouxe o exemplo concreto de novembro: três semanas de frentes frias com acumulados de chuva em 12 horas que superaram a média histórica de um mês inteiro.
— Nós temos um programa de defesa civil nas ilhas que dá uma atenção especial a essas localidades, sobretudo por conta da distância geográfica — explicou Macêdo, destacando que Maré, a mais populosa das três ilhas de Salvador, ganhará um olhar ainda mais transversal com o novo projeto.
Por que começar por Ilha de Maré?
A escolha do território não foi técnica apenas. Foi, acima de tudo, política. Isaura Genoveva, secretária municipal da Reparação (Semur), foi direta: “É importante Salvador iniciar por Ilha de Maré, porque é um dos nossos territórios que parece que não é nosso”.
A fala corta como uma faca e aponta para o cerne da questão da justiça climática. Os efeitos da crise do planeta não atingem a todos igualmente. Recaiem com mais força sobre as populações mais vulneráveis, historicamente marginalizadas. “Esse olhar mais aguçado para as comunidades que mais sofrem com o racismo, com o preconceito e também com os efeitos da crise climática é importante para ressignificar como essa cidade acolhe a maioria da sua população, as pessoas negras”, completou Genoveva.
Meta ousada: carbono neutro antes de todos
Por trás do projeto-piloto, há uma meta audaciosa da administração municipal: tornar Salvador uma cidade neutra em carbono até 2049. Um ano antes do compromisso assumido por outras metrópoles globais.
A pergunta que fica é se a velocidade da burocracia e do investimento conseguirá acompanhar a velocidade das mudanças no clima e a urgência das comunidades. Ilha de Maré, com sua história de resistência, agora vira termômetro. Se a resiliência der certo lá, onde os desafios são maiores, talvez tenha chance de virar realidade em toda a cidade. O mundo vai estar olhando.
