Os números revelam uma epidemia silenciosa e persistente. Dados do Ministério da Saúde mostram um crescimento acelerado da sífilis no país, com mais de 810 mil casos em gestantes desde 2005, colocando uma geração de bebês em risco.
O retrato de uma epidemia que teima em crescer
Os dados são claros e a tendência, mundial. Enquanto o Brasil discute variados temas de saúde pública, uma velha conhecida — a sífilis — segue seu caminho de expansão silenciosa e perigosa. Os números divulgados pelo Ministério da Saúde pintam um quadro grave, especialmente para as gestantes: 810.246 casos registrados desde 2005. A Região Sudeste concentra quase metade dos diagnósticos, mas o Nordeste aparece em segundo lugar, com 21,1% das notificações. A taxa nacional de detecção chegou a 35,4 casos por mil nascidos vivos em 2024, um sinal alarmante do avanço da transmissão vertical, da mãe para o bebê.
Para a ginecologista Helaine Milanez, da Febrasgo, a luta é antiga e os resultados, frustrantes. “Na realidade, sempre tivemos problema com a questão da sífilis no Brasil. Ainda não conseguimos encarar a redução dessas cifras há muitos anos”, admite. A médica faz um contraste revelador: ao contrário do HIV, que viu avanços significativos no controle, a sífilis é um desafio que ainda não foi superado.
O gargalo não é a ciência, é a prática
Aqui reside o paradoxo. Diagnosticar e tratar a sífilis é, na teoria, mais simples e barato do que outras infecções. O problema, segundo a especialista, está na aplicação do conhecimento. “A gente fala que não é falta de informação. Mas precisa aplicar e estudar”, reforça Helaine, que participa do grupo do Ministério da Saúde sobre transmissão vertical. A Febrasgo, inclusive, produz materiais e cursos para capacitar profissionais. O conhecimento existe. A falha está na ponta.
O erro que perpetua o ciclo: subdiagnóstico e parceiros não tratados
O principal nó está na interpretação dos exames. O teste VDRL (não treponêmico) indica infecção ativa e resposta ao tratamento. Já o teste treponêmico, uma vez positivo, marca a exposição à bactéria para sempre. O erro comum — e fatal — acontece quando o profissional vê um treponêmico positivo e um VDRL negativo e assume ser uma “cicatriz” antiga, não tratando a paciente.
— Esse é o grande erro — alerta a ginecologista. — A maioria das grávidas estará com um teste não treponêmico positivo ou com título baixo. Aí, ela mantém o ciclo de infecção.
Esse ciclo se fecha com outro elo crucial: o parceiro não tratado. Muitas vezes, ele é ignorado pelo sistema. Inadequadamente tratado ou simplesmente deixado de lado, o homem reinfecta a gestante, que volta a correr o risco de passar a doença para o feto. O diagnóstico falha. O tratamento falha. E o ciclo se perpetua.
Os novos rostos da infecção: jovens sem medo e idosos ativos
Quem está infectando? Duas faixas etárias preocupam. A primeira são os jovens entre 15 e 25 anos, para quem o terror da AIDS dos anos 80/90 é uma história distante. O HIV se tornou uma doença crônica tratável, e o medo das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) diminuiu. A prevenção foi deixada de lado.
O outro grupo é a terceira idade. Com a vida sexual ativa prolongada por medicamentos e sem o receio de uma gravidez, os métodos de barreira também são negligenciados. O resultado é um aumento expressivo de casos nessa população.
A ameaça silenciosa e os riscos para a criança
O perigo mora no silêncio. Mais de 80% das gestantes com sífilis não apresentam sintomas. A doença é latente. Sem o exame de sangue interpretado corretamente, ela passa despercebida — e direto para a criança. Nos homens, a lesão inicial (o cancro) pode sumir sozinha, dando uma falsa sensação de cura. Eles continuam infectados e transmitindo, muitas vezes sem saber.
A fase secundária da doença, com manchas pelo corpo inclusive nas palmas das mãos e plantas dos pés, é altamente contagiosa. Para uma gestante nessa fase, a chance de infectar o feto é de 100%.
Carnaval à vista: um alerta que não pode ser ignorado
Com a aproximação das festas momescas, o alerta soa mais alto. É um período onde a combinação de desinibição e abandono da proteção cria o cenário ideal para o contágio. “O abandono dos métodos de barreira tem feito crescer, infelizmente, as infecções sexualmente transmissíveis”, lamenta Helaine Milanez.
Ela lembra que, para o HIV, já existe a PrEP, uma ferramenta de prevenção disponível no SUS. Para a sífilis, a arma continua sendo o preservativo — e a consciência. Enquanto o país não conseguir traduzir protocolos em ações efetivas na rede básica, capacitando profissionais e rastreando parceiros, os números seguirão sua marcha cruel. A pergunta que fica é: quantas gerações ainda vão carregar as sequelas de uma doença que já deveria estar sob controle?
